Médico Matadi Daniel
Fotografia: Dombele Bernardo
Apesar de apenas 720 pessoas serem medicamente acompanhadas devido a insuficiência renal crónica, este é um problema que afecta milhares de angolanos. A afirmação foi feita ao Jornal de Angola pelo médico Matadi Daniel, que abriu as portas do seu consultório para nos receber. Durante a nossa longa conversa, o nefrologista afirmou ser urgente que as autoridades angolanas aprovem a lei que vai regular a realização de transplantes de órgãos em Angola. “Caso esta proposta de lei sobre o transplante seja aprovada, os benefícios vão ser muitos, não só para os doentes como para o próprio país”, comentou durante a entrevista que se segue.
Jornal de Angola (JA) - O que falta para que Angola crie as condições para a realização do transplante de rim?
Matadi Daniel (MD) – Apresentámos, há mais de oito anos, uma proposta de lei sobre o transplante de órgãos ao Ministério da Saúde. O que sei é que a proposta já saiu do Ministério e está na Assembleia Nacional para ser discutida e aprovada pelos deputados. Honestamente falando, não sei explicar os motivos de tanta demora, porque oito anos é muito tempo para que uma matéria do género seja analisada, discutida e aprovada. Caso esta proposta de lei sobre o transplante seja aprovada, os benefícios vão ser muitos, não só para os doentes como para o próprio país.
JA - Pode mencionar alguns desses benefícios?
MD- O doente renal poderá ter a reposição de todas as funções do rim que perdeu. Também será reposta a sua potência sexual, que se perde com a falência do rim e, acima de tudo, os doentes voltam à vida activa. Sabemos que 70 por cento desses doentes têm menos de 40 anos e, com esta doença, muitos deles são despedidos dos seus empregos. Eles fazem hemodiálise três vezes por semana, durante quatro horas, e nenhuma entidade patronal quer ter um funcionário que falte tanto. Portanto, temos de ser coerentes e sensíveis quanto a esta situação. O transplante é a solução para estes problemas. Sem contar que muitos desses doentes vieram das províncias, porque, até agora, Luanda é a única província onde se faz hemodiálise.
JA - O que podem fazer os profissionais de saúde para apressar o processo junto dos decisores políticos?
MD - Penso que, de forma urgente, os profissionais de saúde devem tentar esclarecer os decisores políticos sobre os benefícios que o transplante de órgãos tem, não só no aumento da nossa capacidade científica mas também na resolução de um problema urgente. Porque o transplante do rim repõe uma série de funções que o órgão perdeu com a sua falência renal crónica. A primeira condição importante para que haja transplante de órgãos e tecidos de um indivíduo para outro é a existência de uma lei que o regule, porque senão será uma autêntica selva onde cada um fará o que bem entender.
JA - Quantas mortes podem ser evitadas por ano se o transplante do rim for aprovado?
MD - É difícil dizer quantas mortes podem ser evitadas, porque a mortalidade dos doentes em programa de hemodiálises que temos aqui no país, ronda entre 25 e 30 por cento. Quer dizer que, dos 100 doentes que entram em diálise, 25 a 30 por cento morrem. E uma das grandes causas de mortalidade entre pessoas com problemas de insuficiência renal é a doença cardiovascular.
JA - Quanto é que o Estado gasta anualmente com o tratamento desses doentes?
MD - Tendo em conta que entraram em diálise, no ano passado, cerca de 120 doentes, estamos com um total de 720 em programa crónico de diálise. Pelas contas que fizemos, o Estado tem em perspectiva gastar este ano 30,24 milhões de dólares para tratar esses doentes. O tratamento é extremamente caro. Não é por acaso que muitos países africanos não têm este tipo de serviços no seu sistema de saúde, porque é muitíssimo oneroso. Cuidar destes doentes envolve muitos gastos, e o Estado angolano assumiu isso há cerca de 10 anos. Actualmente já não transferimos ninguém para o exterior, salvo em situações muito pontuais.
JA - Quantos doentes com problemas no rim são acompanhados?
MD - É difícil apresentar números, porque não temos uma dimensão exacta de quantos existem no país. Aquilo que nós podemos controlar é o número de pacientes que fazem tratamento dialítico, que são os 720 registados. Mas temos uma amostragem que nos pareceu significativa, tendo em conta o rastreio feito no ano passado numa escola situada no bairro Palanca durante o qual apurámos que de um grupo de cem crianças, 35 apresentavam alterações urinárias. Isto é muito preocupante porque existem outras patologias infecciosas que podem levar a lesões renais, nomeadamente a hepatite B. Temos registo de 40 crianças em consultas externas que, embora não tenham falência renal crónica, têm alterações renais, das quais 20 por cento apresentam no seu quadro clínico hepatite B. Se estas pessoas não forem acompanhadas atempadamente podem vir a desenvolver falência renal crónica nos próximos 10 ou 15 anos.
JA - Além da hepatite B, que outras doenças podem desencadear a insuficiência renal?
MD- Nós temos de destrinçar aqui dois tipos de insuficiência real, porque há a aguda e a crónica. A insuficiência renal aguda é provocada pelo meio e maioritariamente pelo paludismo. Ou seja, o paludismo é a grande causa de falência renal aguda. Mas também temos infecções bacterianas sistémicas que podem levar à disfunção de muitos órgãos, incluindo os rins, o uso excessivo de álcool, fumo e o estilo de vida sedentária que muitos de nós levamos. Quanto à insuficiência renal crónica, as causas podem ser a hipertensão arterial, principal causador no nosso meio, a diabetes que tem a ver com o aumento de açúcar no sangue, inflamações dos filtros renais, a tuberculose e a sida, que também é uma das principais causas. E a nossa preocupação prende-se com o facto de mais de 70 por cento dos nossos doentes terem idades inferiores a 40 anos.
JA - Quais os sintomas?
MD - Inchaço nas pernas, inchaço nos olhos, hipertensão arterial precoce em indivíduos jovens, que, se não for diagnosticada e acompanhada devidamente, pode evoluir para insuficiência renal, dores na zona anterior da cabeça, acompanhada de palpitações, urina muita carregada tipo chá forte e infecções urinárias de repetição. Essas infecções, quando são repetidas, levam a uma cicatrização da massa renal e, consequentemente, ao encolhimento dessa mesma massa. E se a massa encolhe, diminui substancialmente os níveis de função. São apenas sintomas precoces que devem ser levados em atenção e acompanhados para não evoluírem para doença renal crónica. Porque, na fase avançada da doença, os sintomas já são outros, como insónias, em que o doente dorme mais de dia do que de noite, e vómitos matinais. E nesta fase é muito complicada, porque o doente entra já em diálise. Por isso, devemos trabalhar mais na detecção precoce da doença e isso tem muito a ver com o sistema de saúde pública do país.
JA - A doença renal pode ser hereditária?
MD - Não. A doença renal por si só não é hereditária. Mas existem algumas patologias do rim que são hereditárias, nomeadamente a doença renal poliquística, que se transmite de pais para filhos, em que 25 por cento dos descendentes terão doença renal na fase adulta. Mas a falência renal crónica é condicionada por múltiplas patologias já mencionadas anteriormente.
JA - Sabemos que os serviços de hemodiálise no país são privados. Não é dispendioso para o Estado?
MD - É dispendioso, porque, em qualquer parte do mundo, os serviços de diálise são muito caros. Mas fica menos caro fazer aqui no país do que fora, tendo em conta que, no exterior, tem de se pagar a estadia e talvez outras despesas. Fazer as diálises no país potencia a massa humana. Hoje, temos uma centena de técnicos em hemodiálises que não teríamos se o tratamento continuasse a ser feito no exterior. De facto, neste campo, o Estado teve uma atitude muito inteligente ao inverter o tratamento para as nossas capacidades internas.
JA- É possível os médicos detectarem, após o nascimento de alguém, alguma irregularidade no rim?
MD – Essa pergunta é muito pertinente, porque de facto há muitas crianças com malformação congénita do ponto de vista nefrológico. A detecção precoce também permite corrigir precocemente essas alterações no rim. E os sintomas das malformações nefrológicas nas crianças são infecções urinárias de repetição. Dor e choro quando a criança urina é também um sinal de alerta. Os pais devem levar a criança à consulta de nefrologia para se saber qual a origem do problema, porque uma das causas da falência renal crónica nas crianças são as malformações nefrológicas.
JA - Quantos médicos nefrologistas tem o país?
MD - Sete angolanos e todos estão instalados em Luanda. A maioria trabalha no hospital militar. Temos em formação dez pessoas, três no Brasil e sete em Angola.
JA - Quais são as províncias com mais casos de insuficiência renal?
MD - As províncias com mais casos de insuficiência renal são Luanda, Cabinda, Huambo e Bié, o que não quer dizer que as outras não tenham doentes. Mas como não temos assistência primária bem estruturada, muitos desses doentes só chegam a Luanda num estado avançada da doença, porque ao nível das suas províncias não há serviços de nefrologia. A nossa política, a nível da Sociedade Angolana de Nefrologia e dos colégios de especialidade, é dar permanentemente formação, tanto aos enfermeiros como aos clínicos gerais, sobre aspectos essenciais da patologia renal.
JORNAL DE ANGOLA